Por três dias, 1345 interessados em economia colaborativa de 39 nacionalidades se reuniram no Cabaret Sauvage, em Paris, para participar de 150 painéis, sessões e workshops sobre o tema nos dias 20, 21 e 22 de maio. Era a 3ª edição do OuiShare Fest, o maior festival de economia colaborativa do mundo, que este ano tinha como tema Lost in Transition (Perdido na Transição), assumindo que ainda não temos respostas para todas as perguntas existentes, mas que estamos em um processo de evolução da economia para um modelo mais colaborativo. As falas, sempre de alto nível, trataram de trazer um elefante branco para o meio da sala – a contradição entre os valores de igualdade e a realidade capitalista da economia colaborativa.
É consenso que empresas como Airbnb e Uber ajudam os usuários a compartilhar em uma escala nunca antes vista, mas por ali questionou-se o fato de que a governança e participação nos lucros ainda são centralizadas, ficando nas mãos de poucos. Era apenas o início das conversas abarcadas por uma programação que refletiu a crença de que as plataformas de interação colaborativa deveriam partilhar propriedade com os maiores responsáveis por seu sucesso: os usuários, que abrem suas casas e carros para estranhos.
A discussão foi para além da crítica e diversas sessões e painéis foram dedicados a pensar nas soluções para tal contradição, como o uso de blockchains para partilhar propriedade e governança com milhares de usuários, bem como trazer transparência para as trocas financeiras online. O blockchain é uma espécie de base de dados onde ficam armazenadas todas as transações financeiras em Bitcoin já executadas. Foi levantado como a grande inovação tecnológica por ser a possibilidade de prova de todas as transações financeiras na rede e uma promessa de rede horizontal com incalculável liberdade.
NA PRÁTICA, A TEORIA COSTUMA SER OUTRA
Nos três dias de evento, 230 palestrantes e facilitadores dividiram-se em dois palcos, duas salas de workshops e uma sala flutuante, em um barco atracado no rio em frente ao local do evento. Ao fim do primeiro dia, as muitas opções de atividades concomitantes, somadas ao conteúdo mentalmente intenso, às falas rápidas, com duração de 15 minutos e à ausência de tempo para perguntas me fizeram sair dali atordoada e com uma pergunta na cabeça: estamos mesmo fazendo diferente?
A dificuldade de presença e atenção plena devido ao excesso de escolhas, a sensação de estar sempre perdendo algo e a abordagem mental e acelerada repetiam os padrões de comportamento que nos levaram a esse ponto de termos de repensar para onde estamos indo – e por quê estamos indo. Afinal, onde estava o espaço para a colaboração, as perguntas e, principalmente, o sentir, a emoção? Se estamos falando de colaboração como um valor, para uma mudança de valores efetiva, acessar o sentir se faz essencial. Se não, seguimos sendo guiados exclusivamente por nossas mentes.
No segundo dia, porém, a experiência foi mais equilibrada. Workshops de mindfullness (atenção plena) e de teatro e improvisação cuidaram de trazer outros acessos ao tema da colaboração. As palestras e painéis do dia giraram em torno de modelos de gestão descentralizados. Frederic Laloux, autor do livro Reinventing Organizations (Reinventando Organizações, em tradução livre), apresentou uma pesquisa sobre modelos de gestão feita por ele nos últimos seis anos, na qual descobriu que, mesmo sem chefes e subordinados, as empresas descentralizadas apresentam menos poder centralizado nas mãos de poucos e mais poder de ação e rapidez na percepção de para onde o barco precisa navegar.
Para isso, segundo Laloux, se faz necessário desenhar processos estruturados de mecanismos de decisão, resolução de conflito, gestão de crise, investimento, funções de equipe e admissões.Ao defender a autogestão, onde autoridade e inteligência são distribuídas, ele fez uma comparação: “Seguimos funcionando sob hierarquias rígidas, quando duas das organizações mais complexas e incríveis do planeta, a natureza e o cérebro humano, são completamente distribuídas, sem nenhum tipo de organograma”
Ao final de sua apresentação, sua fala rendeu palmas: “Pare de se apresentar no trabalho em seu papel profissional e passe a se apresentar com toda a glória de quem você realmente é, sem máscaras”.
COLABORAÇÃO É ALGO QUE SE APRENDE
O painel sobre a colaboração como uma questão de design, cultura ou natureza humana contou um dos grandes palestrantes do evento, Charles Einsentein, autor do livro Sacred Economics (Economia Sagrada, ainda sem tradução para português), no qual aborda problemas e soluções de nosso o sistema monetário que, segundo ele, tem contribuído para a alienação, competição e escassez, além de ter destruído nosso senso de comunidade.
No painel, Einsenstein disse que “nosso paradigma de sucesso defende que o objetivo é não precisar de ninguém por poder pagar por tudo”. Nathan Stern, CEO do Common Good Factory, desenvolvedor de metodologias colaborativas para nutrir o senso de confiança dentro de comunidades, levantou outro ponto: “Não somos treinados para cooperar. Somos treinados para sermos consumidores, não cidadãos e por isso precisamos aprender a cooperar”.
Discussões sobre o que de fato é a economia colaborativa ganharam espaço no terceiro e último dia de festival, quando um dos temas foi o fato de a colaboração estar presente nas relações humanas desde sempre, mas que o modelo econômico vigente nos distanciou dela e, tendo chegado a um beco sem saída, foi necessário retomar esse valor de maneira mais institucionalizada.
“A cultura do compartilhamento é muito maior e anterior às startup que vivem disso, além de ser gratuita. A verdadeira economia colaborativa está acontecendo nas comunidades físicas com muito mais força do que nas virtuais”, disse David de Ugarte, do Grupo Cooperativo de las Indias, uma consultoria em inovação corporativa.
Para realmente mudarmos nossos padrões de comportamento, para adotarmos uma cultura mais colaborativa, se faz necessária a expansão de consciência. Ronald van den Hoff é fundador do Seats 2 Meet, um espaço de coworking que não cobra nada pelo uso de suas instalações, com filiais em toda a Europa, e acredita que as empresas são responsáveis por estimular novos padrões de comportamento: “Estamos vivendo a transição da economia da experiência para economia da transformação, onde produtos e serviços não só geram experiência ao consumidor, mas também algum tipo de transformação na sociedade”
A economia da transformação, segundo ele, promove a transferência de conhecimento a respeito daquilo que está se consumindo, como por exemplo informar de onde vem o produto, como é a cadeia de produção e remuneração de todos os envolvidos.
Os presentes no festival eram, em sua maioria, empreendedores da economia colaborativa, mas haviam também empreendedores sociais e líderes empresariais. Pessoas que já estão envolvidas com o tema. Apesar dos esforços, a bolha segue falando para a bolha, dentro e fora do festival. No que tange ao acesso a plataformas colaborativas, o vício se repete: as soluções ainda são restritas aos que têm acesso à internet, smartphones e informações fora da grande mídia, o que deixa grande parte da população de fora.
De modo geral, fiquei com a impressão de que o modelo do evento poderia ter sido mais colaborativo. Seria legal ter sessões de cocriação e espaços para pergunta, o que acabou acontecendo informalmente nos intervalos. Mas o networking entre continentes, as interações sobre modelos de negócio, cultura organizacional e aprendizados dos empreendedores foram o ponto alto do evento, junto com a curadoria de palestrantes e temas abordados.
A rede OuiShare, organizadora do festival, é influente e conseguiu trazer alguns dos expoentes em apoiar comunidades a perceberem seus reais valores. Para aqueles que têm a impressão de que a economia colaborativa é apenas uma resposta pontual para a recessão econômica, o festival provou o contrário: o movimento ainda é pequeno, mas está em rápida ascensão.
Fonte: Site Projeto DRAFT, texto de Carolina Bergier.